Os caminhos de uma obra inacabada
A presença de Karl Marx nos dias de hoje é, sem dúvida, um legado. Suas ideias permaneceram ao longo do tempo não somente por sua capacidade intelectual, mas, sobretudo, por sua convicção e ação políticas.1 Para que as elaborações teóricas se realizassem enquanto prática social foi preciso que se difundissem para o maior número de pessoas e organizações por todo o mundo, conquistando seguidores e novos teóricos que as mantivessem vivas, por isso, o esforço para materializa-las e transmiti-las foi uma preocupação sua, ao lado do parceiro Engels, durante toda a vida: os amigos uniam a produção teórica e a prática política, através da palavra impressa.
Os jornais foram o principal veículo de difusão de seus escritos e uma fração muito reduzida destes chegou a ser editada em forma de livros enquanto ambos viviam.2 Desse modo, boa parte da produção teórica deixada por Marx e Engels teve de ser organizada, descoberta e redescoberta num longo processo de circulação de alguns materiais publicados e da investigação de muitos manuscritos que não conformavam um conjunto pronto e hermético de ideias. Além das consequências que esse fato trouxe em termos de interpretação e novas formulações, que passaram a constituir o marxismo para além de seus fundadores, ele estabeleceu condições muito favoráveis e a necessidade do desenvolvimento de uma rede complexa de produção editorial que colocassem essas ideais em circulação a partir de um suporte material.
Com a morte de Marx, Engels e seus contemporâneos foram os primeiros a trabalhar em edições que contemplassem os caminhos de seu pensamento para construir a coerência de uma obra fundamental do marxismo, que se realiza num corpus minimamente definido até 1895.3 A partir daí, novos interesses e dimensões políticas passaram a mover a difusão do marxismo, acompanhando a história do movimento de trabalhadores na Europa e no mundo.4
Esse processo é complexo o que permite uma grande variedade de abordagens de sua história. Para efeitos desse artigo, gostaríamos de delimitar dentro dele duas tendências gerais de ações divulgadoras: uma que busca reproduzir o seu corpus originário,5 resgatando inéditos, copilando e reeditando escritos de Marx e Engels; e aquelas que elaboram sobre essa produção de forma autoral, criando obras de interpretações, críticas ou novas teorias. Esses movimentos não estão dissociados, pelo contrário, caminham juntos, numa relação nem sempre equilibrada, para encontrar os percursos de elaboração do pensamento de seus mestres, difundi-lo a um número cada vez maior de pessoas e extrair deles potencialidades ainda não exploradas. Contudo, essa divisão se faz necessária, pois não pretendemos aqui discutir os aspectos gerais de conformação do marxismo, eles serão o subsídio fundamental para o tratamento da história de uma única obra, O Capital, em seus caminhos de difusão e recepção, num território específico, o Brasil.
O Capital seria eleito, desde cedo, como a obra prima de Marx, ele mesmo era pretensioso com os objetivos que gostaria de alcançar com a sua economia e, por isso, ela seria inquestionavelmente colocada como um dos pilares da teoria marxista.6 No entanto, este reconhecimento não eliminou os debates em torno de sua produção e recepção, pois o percurso editorial de seus livros acompanha a definição geral de uma obra inacabada.7 Talvez possamos afirmar que entre todos os livros de Marx ela atinja o símbolo máximo dessa expressão, pois o próprio autor se viu insatisfeito em diversos momentos, deixando projetos e reelaborações de sua estrutura em aberto e a maior parte a publicação foi feita de maneira póstuma. Ao mesmo tempo, o seu conteúdo denso e inovador revelava os mecanismos fundamentais e a monstruosidade do sistema capitalista para firmar o princípio comum das novas elaborações que viessem a contribuir para o marxismo.
Entre a solidez dos princípios teóricos e a abertura das discussões e análises, O Capital alcançou alto grau de consagração sobre o qual foram depositados grandes esforços de interpretação e divulgação, enfrentando dificuldades proporcionais ao seu caráter, à sua profundidade e dimensão.8 À época de Marx, salvo poucas exceções, a circulação sistemática das edições completas do primeiro volume ficaria limitada à Europa ocidental, e os livros segundo e terceiro organizados por Engels circulariam em ritmo ainda mais lento.9 Em cartas, o autor anunciava ao velho amigo a expectativa de que sua obra prima fosse ignorada e, ao mesmo tempo, pensava em estratégias para quebrar o silêncio e torna-la acessível.10
A verdade é que, para além de suas intenções, a difusão de O Capital deveria enfrentar suas características internas e os desafios comuns a todo e qualquer movimento de circulação de ideias, especialmente quando essas atingem nível internacional, como é o caso do marxismo.11 Além de torna-la compreensível aos leitores, especialmente àqueles vindos das classes populares, não menos importante era o cuidado com a realização das traduções em um número cada vez maior de línguas, e as interferências que essas passagens poderiam imprimir ao texto. Ao lado dessas questões, colocava-se ainda a ampliação do repertório teórico marxista e os interesses políticos mais imediatos aos quais respondia na medida em que alcançava movimentos políticos de disputa pelo poder, especialmente, após a Revolução Russa.
Considerando todos esses fatores, o interesse pela obra e sua repercussão suscitou, aos poucos, que o meio intelectual e político criasse meios facilitadores para sua divulgação e então surgiram as edições resumidas do livro. A primeira delas foi feita por Carlo Cafiero no ano de 1879,12 antecedendo a edição completa em italiano, sua iniciativa foi saudada por Marx que se preocupava com a necessidade de ampliar o alcance de suas ideias e, desse modo, outros compêndios foram feitos, inclusive a pedido do autor, ainda no século XIX, mantendo-se importantíssimos ao longo das décadas seguintes para a recepção de O Capital, dentro e fora da Europa.13
O formato reduzido atendia às demandas de simplificação do processo editorial e, ao mesmo tempo, das possibilidades de sua leitura, tronando-se mais acessível por seu formato, volume e linguagem, e compatível com as necessidades de sua utilização ampla em termos de construção política. Contudo, os benefícios da divulgação simplificada não se dariam sem uma interferência direta em seu conteúdo. O próprio Marx não veria nisso um problema por princípio, mas em determinados momentos o processo de vulgarização seria tratado de forma pejorativa, como algo que afastava os seguidores de Marx de suas ideias, ao invés de aproximá-los.
A pluralidade de caminhos que as edições de O Capital seguiu desde sua primeira publicação, colocou a obra na posição ambígua de um livro “mais exaltado do que lido”.14 Essa afirmação é muito fértil para uma reflexão editorial, pois a exaltação de um livro ou a sua leitura, são aspectos não excludentes de sua realização e circulação. O livro interessa pela dimensão material na qual realiza determinado conteúdo, que pode ser lido —consumido—, mas também por aspectos simbólicos da sua representação.15 A afirmação, na verdade, deve ressaltar para nós as nuances entre a legitimidade de uma teoria, e a necessidade de seus adeptos em recorrer às suas origens, criar mecanismos de identidade e mantê-la viva como uma tradição de pensamento. Dessa dinâmica surgem os movimentos intelectuais e editoriais voltados, ora para edições resumidas, ora para edições completas de uma obra tão particular.
Todo esse debate tem implicações no processo político e editorial que constrói as vias de recepção d’ O Capital no Brasil. Se a obra prima de Marx teve um processo lento de difusão no continente europeu e, dele, para o restante do mundo, sua recepção será acompanhada pelo meio intelectual e político brasileiros de maneira análoga, assimilando as condições de difusão do marxismo no país e as formas de mediação que antecederam as iniciativas nacionais para a publicação deste texto. Estas criaram necessidades e condições próprias para o acesso e circulação da obra que, por sua vez, sustentaram camadas de um anteparo temporal e histórico à sua primeira publicação completa, durante um século. O distanciamento não é estático, tampouco conforma uma barreira impenetrável. Nele, ocorrem diversas manifestações de interesse e penetração do marxismo, inclusive das obras do corpus fundador produzidas por Marx e Engels, conforme pretendemos demonstrar.
O primeiro trabalho sobre a recepção das ideias marxistas no país, sob uma perspectiva editorial, foi feita por Edgard Carone,16 ele será a base para o desenvolvimento do presente artigo, tendo em vista que dele nos utilizamos para mapear as edições brasileiras de O Capital e analisa-las fisicamente em sua biblioteca, que hoje pertence à Universidade de São Paulo. Avançando naquilo que já fora apresentado pelo referido historiador, pretendemos contribuir para os estudos em história do livro e das edições marxistas utilizando-nos de duas questões gerais que conformam o fio condutor dessa análise: como as edições de O Capital no Brasil acompanham as conjunturas políticas de difusão internacional do marxismo? Quais características da sociedade e mercado editorial brasileiro corroboram para o surgimento tardio da primeira edição completa?
Para desenvolvê-las iremos apresentar uma sistematização da ordem e origem das primeiras publicações, identificando a recorrência das edições resumidas, os elementos materiais da edição e algumas de suas referências paratextuais.17 Permeando essa ordenação, pretendemos contextualizar o processo editorial frente ao desenvolvimento político do país, com destaque à posição do marxismo, de suas organizações e das condições editoriais que as acompanham. Em um segundo momento, apresentaremos sob a mesma perspectiva, as circunstâncias em que se realiza a primeira edição completa —que não entrou no levantamento feito por Carone, encerrado em 1964—, para discutirmos nas conclusões os possíveis significados de sua produção dentro da trajetória do marxismo no Brasil.
Condições para a recepção de O Capital no Brasil: questões sobre a “infraestrutura da superestrutura”
As primeiras edições brasileiras de O Capital surgiram na década de 1930 e se restringiram às edições resumidas até o ano de 1968. Essa temporalidade deve ser entendida à luz do movimento mais geral de recepção das ideias marxistas no país, que incidem em seu meio operário a partir das notícias e repercussões políticas da Revolução Russa. Nesse momento, o marxismo já possuía um repertório teórico abrangente em relação à obra de seus fundadores, e seu centro difusor passa a ser mediado politicamente mediado pela III Internacional, que conferia um lugar específico para a divulgação das obras de Marx e Engels em seus projetos editorias e políticas de propaganda.
Antes disso, o que se vê são referências pontuais e esparsas sobre Marx e suas obras, sem que possamos identificar, de fato, indivíduos ou grupos marxistas. O seu nome é mencionado em jornais a partir de 1870, algumas correspondências de trabalhadores estrangeiros com seus conterrâneos citam seus textos, e publicações do movimento operário utilizam superficialmente jargões de sua teoria.18 O Partido Socialista Brasileiro, de 1902, traz em seu documento de fundação a fórmula inicial de O Manifesto Comunista, cujo conteúdo é totalmente abandonado no desenvolvimento da carta, e, ao final indica a leitura de Le Capital (em francês) aos seus adeptos.19 Os escritos de alguns líderes anarquistas contavam com referências a obras de Marx e Engels, como é o caso do apêndice de Mundos Fragmentários, brochura libertária de Octávio Brandão, que menciona Manifeste Communiste entre suas obras de referência.20 E, ainda, encontramos uma primeira menção isolada sobre O Capital, de Carlos Marx, em edição portuguesa numa pequena nota no Jornal de Recife no ano de 1912 (figura 1).21
Figura 1- notícia em Jornal de Recife, 22/11/1912.
Esses indícios permitem afirmar que o corpus originário do marxismo não era totalmente estranho ao meio intelectual e político do país, ele compôs um processo amplo de recepção das principais teorias europeias do século XIX, ao lado do positivismo, do socialismo utópico, do socialismo reformista e do anarquismo, mas teve uma entrada marginal. Todas as outras correntes teóricas tiveram maior presença nas organizações políticas, nos debates e na circulação de livros e essa dinâmica revela uma estrutura de recepção de ideias elitista e débil, formada por uma indústria livreira pouco desenvolvida e um público leitor reduzido.22 Sobre isso, Lincoln Secco diz: “A correspondência de ideias sem a ‘infraestrutura da superestrutura’ limitava o alcance do socialismo”23 Ou seja, ainda que as referências teóricas fossem recebidas em momentos próximos ao de sua produção e circulação nos meios de origem, chegavam ao Brasil e ficavam restritas aos círculos intelectuais e interesses da elite. O marxismo, enquanto corrente teórica interna aos partidos socialistas, certamente não se encaixava nesses interesses, encontrando maiores dificuldades de penetração e ficando, especialmente, apartado dos setores populares a quem se dirigia.
O anarquismo foi a primeira corrente a se enraizar em meio à classe trabalhadora brasileira, conseguindo romper com essas limitações a partir de algumas particularidades. Atribui-se a consolidação precoce de seus princípios entre as classes populares, primeiramente, à grande entrada da mão de obra imigrante, sobretudo italianos e espanhóis, que carregavam os valores libertários desde sua terra de origem e, em segundo lugar, às formas de resistência estruturadas pelos trabalhadores brasileiros nas áreas urbanas antes dos sindicatos, através entidades de cooperação e auxílio mútuo.24 Segundo o debate sociológico e histórico, estas corroboraram desde cedo para a adoção de uma concepção voluntarista de transformação social que encontraria maior afinidade nas ideias anarquistas e, em seguida, se somaria às demandas coorporativas pleiteadas pelas entidades sindicais, através do anarcossindicalismo.25
Isso não quer dizer que os ideias libertários não tiveram de superar os obstáculos da desigualdade, do analfabetismo e mesmo das diferentes línguas presentes num meio operário de base imigrante. Na direção de sindicatos e outras organizações, os militantes se dedicarão a publicar jornais e panfletos e serão meticulosos em iniciativas na área de educação e na cultura, tendo em vista o fortalecimento dos laços políticos através de espaços de sociabilidade e de uma política formativa para sua base sindical, e para o movimento operário em seu conjunto, contribuindo, inclusive, para o avanço das precárias condições de formação e circulação de ideias entre as classes populares.26
Ou seja, a superestrutura acompanhava as transformações econômicas locais de modo complexo e se relacionava com ideias vindas de fora a partir de limitações importantes. Estas não foram capazes de impedir a formação de uma cultura intelectual e política dos trabalhadores, mas definiu um ritmo lento e uma circulação insuficiente para a recepção das ideias de Marx, e do marxismo em geral. Não desprezaremos, contudo, o fato de que o autor era conhecido e suscitava interesse ao ponto de a primeira edição portuguesa de O Capital ter sido importada no mesmo ano de sua publicação naquele país. Mesmo as diversas referências aos seus textos em francês indicam o mínimo reconhecimento em torno de sua figura, se a importação de livros era a principal conexão dos brasileiros com os pensadores europeus da época, Marx e O Capital integraram esse mecanismo de troca.27
A construção do comunismo no Brasil e os primeiros resumos de O Capital nos anos 1930
Os eventos do outubro russo que colocarão um novo paradigma para o movimento de trabalhadores no Brasil e no mundo. A tomada do poder pelos bolcheviques precisava ser discutida, abrindo as portas para a inserção do marxismo diretamente nas organizações da classe, com vistas à transformação de sua cultura política e tradição ideológica. Mesmo com as notícias restritas e relatos divergentes sobre o caráter da Revolução de 1917, os líderes anarcossindicalistas tentavam entender esse processo e as questões que envolviam a luta por sua consolidação. Diversos grupos saíram em sua defesa, até que a fundação da Internacional Comunista (IC), em 1919, anunciava a ruptura no movimento internacional de trabalhadores a partir do processo revolucionário. Em seguida, artigos em jornais evidenciam as discussões que levariam à cisão das lideranças no país, e as primeiras agremiações a reivindicarem o marxismo se definem, quando os bolcheviques já eram vistos como uma força divergente do anarquismo e da socialdemocracia.
Os resultados positivos da ação revolucionária coincidiram com um momento de crise política nas organizações brasileiras que viveram um ascenso importante de greves entre 1917-1919, conquistando algumas demandas econômicas, mas que, em seguida, tiveram que lidar com a repressão e as dificuldades em consolidar suas vitórias e aprofundá-las numa concepção de disputa política geral na sociedade. Isso favoreceu que parte das lideranças visse no bolchevismo uma nova forma de lidar com a realidade brasileira diante dos fracassos e da retração vividos naquele momento. Finalmente, em março de 1922, foi possível aglutinar os diversos ‘partidos’ regionais como uma força nacional, o Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Apesar da força desses acontecimentos, a ruptura com a tradição anterior se consolidaria no médio prazo, através de embates políticos e da formação dos militantes, por isso, durante um bom tempo, no Brasil, “o primeiro comunismo é também um anarquismo tardio”, sendo assim, os primeiros dirigentes se viam pressionados a construir uma alternativa política, ao mesmo tempo, em que precisavam uma disputa ideológica fundamental de oposição à ação estratégica de suas organizações até aquele momento.28 Essa experiência exigia que se dedicassem à própria formação e criassem mecanismos de agitação e propaganda dos ideais marxistas em meio à classe trabalhadora.
Recorreram, assim, às seções e organismos da Internacional Comunista (IC) para receber orientações, textos e obras que pudessem servir ao seu processo de construção.29 O espírito geral das publicações teóricas e da linha de propaganda da IC se voltava à necessidade de organizar suas seções revolucionárias fora do território soviético, tratando de questões sobre a organização bolchevique dos respectivos partidos e de sua estratégia revolucionária. Tendo em vista essas preocupações e objetivos, a maioria das obras de Marx e Engels ocupava posição secundária frente a outras que abordavam diretamente esses problemas.
A primeira recepção do marxismo no Brasil se deu, portanto, em função de obras e autores que suprissem a necessidade local de criar militantes, mesmo que o corpus fundador do marxismo fosse muito pouco conhecido.30 Essa experiência estabeleceu uma característica doutrinária para a formação dos primeiros discípulos de Marx, pois eles reivindicavam seu nome, antes de tudo, para firmar-se como organização política filiada à III Internacional, herdeira da revolução bolchevique neste território. Discute-se muito sobre as consequências dessa situação na qualidade da formação e compreensão teórica desses novos comunistas, que não trataremos diretamente nesse texto. Aqui cabe ressaltarmos que a necessidade de formar e disputar a classe operária pressionava a organização comunista a avançar em relação à tradição libertária no que diz respeito a publicações de livros.31
Essa necessidade vai se resolvendo aos poucos e, da fundação do PCB ao final dos anos 1930, a produção editorial marxista no Brasil pode ser vista como uma “ação artesanal” na qual o partido não terá um aparato oficial de edição.32 Os primeiros textos editados ficavam a cargo da iniciativa dos militantes ou dos comitês regionais que procuravam editoras fomentadas por ativistas e simpatizantes marxistas, ou mesmo por algumas casas comerciais. Os critérios para a seleção das publicações passavam pelos objetivos políticos que colocamos, fazendo com que o bolchevismo e a Revolução Russa marcassem os temas das primeiras publicações, tanto de autores nacionais, em textos voltados ao convencimento e à introdução doutrinária, ou de autores soviéticos, entre os quais, Lênin foi o mais traduzido, com 17 textos publicados entre 1919 e 1935.33 Essas prioridades políticas se somavam às condições materiais e organizativas precárias que restringiam as possibilidades de tradução e edição de textos teóricos mais densos e volumosos.
Sendo assim, faz sentido que a primeira edição brasileira de uma obra de Marx e Engels seja o Manifesto Comunista, publicado em 1924, a partir da tradução francesa de Laura Lafargue, vertida ao português por Octávio Brandão.34 Fora do repertório de produção bolchevique, o manifesto tem um caráter político indiscutível e é simbólico como fundador dos princípios de uma organização marxista, sendo essencial para a formação de uma consciência e identidade com essa tradição. O volume de seu conteúdo e a linguagem era mais acessível do que qualquer outro texto dos autores. De características totalmente diversas, o texto completo de O Capital, em três volumes, não seria tão simples de ser encarado por tradutores brasileiros, mesmo a partir da edição francesa ou castelhana, mas as edições resumidas estavam em circulação e poderiam cumprir um papel facilitador caso a obra estivesse entre as prioridades de utilização partidária.
Sabendo que a edição portuguesa do compêndio de Gabreil Deville já circulava no Brasil dez anos antes da fundação do PCB, poderíamos assumir que ela supriu as necessidades dos leitores e teria adiado a iniciativa de uma publicação nacional, especialmente porque a notícia sobre a tradução de Albano de Moraes foi veiculada por um jornal de Pernambuco, onde, coincidentemente, se formou um dos primeiros grupos comunistas em 1919, o maior deles.35 Essa informação faz crer que a edição tenha circulado entre aqueles que aderiram ao comunismo no local e, deles, para outros partidários de nova ideologia, sobretudo dirigentes. Contudo, a capital pernambucana não era um grande centro de distribuição de livros o que, possivelmente, limitava a circulação dos volumes recebidos em grande quantidade para o restante do país. Acreditamos, então, que somente com as edições brasileiras O Capital será colocado ao público brasileiro e inserido nas redes comunistas de formação e leitura.
A edição mais antiga que conseguimos rastrear foi publicada no ano de 1931, pela Editorial Moderna Paulistana (figura 2).36 A empresa não é citada nos principais estudos sobre história do livro no Brasil e não figura entre as editoras próximas ao PCB, sendo que no levantamento feito por Edgard Carone, O Capital foi o única edição marxista realizada por ela.37 Sabemos que a editora se situava à Rua Libero Badaró, 45, e sobre ela encontramos apenas algumas notas de jornal em A Gazeta, entre as quais uma se refere à publicação do livro de Marx.38 A brochura traz o resumo de Gabriel Deville, o tradutor não é indicado nas folhas de rosto e também não está associada a nenhuma coleção, logo, buscamos investigar se a possibilidade de uma cópia da tradução de Albano de Moraes teria sido executada. Analisando a estrutura do livro e alguns trechos de capítulos, conseguimos perceber que o texto utilizado é uma cópia, provavelmente sem nenhuma revisão, da edição portuguesa. Mesmo um pequeno texto de introdução aos leitores é utilizado com poucas modificações – só é retirado o nome da coleção e a assinatura de Agostinho Fortes, autor da abertura.39 Entre a Europa e o Brasil, vê-se que a lusitana cumpriu um papel importante no primeiro momento de recepção dos resumos de O Capital do mundo lusófono. A apropriação do texto se deu com certeza em função da facilidade em reproduzi-lo, mas demonstra também que a sua circulação deveria ser ampliada, aproveitando as possibilidades do mercado local.
Figura 2 – Capa Editora Moderna Paulistana
Não é possível saber se a realização da editora Moderna foi fruto de uma iniciativa militante, o fato de este se seu único livro marxista levantado poderia nos indicar uma negativa, ao mesmo tempo, em condições tão dispersas da atividade editorial comunista, e das dificuldades que qualquer editora encontrava no mercado, esse pode ter sido o único empreendimento de uma efêmera casa simpatizante das ideias de Marx. Se quisermos supor que foi a publicação de uma editora comercial ela revela, talvez, a disposição de um editor em prospectar a abertura para a recepção da obra no mercado paulista. Nos anos 1930, o Rio de Janeiro ainda concentrava a produção de livros e era o principal polo cultural do país, mas São Paulo era uma cidade economicamente mais importante, onde a cultura passava a ocupar um lugar de projeção do moderno, com abertura a novas ideias. A publicação de O Capital nesse centro cultural emergente condizia com sua dinâmica de crescimento, na qual o PCB conquistava um espaço importante não apenas nos meios operários, como entre seus intelectuais de vanguarda.40
Somente em 1932 podemos identificar a realização de uma edição d’O Capital como uma dessas iniciativas dispersas e artesanais de publicação ligada aos comunistas: a Editora Unitas irá publicar o compêndio de Carlo Cafiero (figura 3), pela primeira vez em língua portuguesa – informação destacada na introdução dos editores.41 Podemos pensar os motivos que levaram a Unitas a escolher a versão de Cafiero, primeiramente, ela seria uma novidade ao mercado, pois o texto de Gabriel Deville já era conhecido, tanto na versão vinda de Portugal, quanto naquela feita pela Moderna Paulistana. Em segundo lugar, ela possuía um conteúdo mais favorável do ponto de vista da popularização do marxismo entre a massa trabalhadora, pois a versão de Cafiero se apresenta de modo mais enxuto, com 171 páginas.
Figura 3 – Capa Editora Unitas
Se compararmos outros elementos da apresentação dos livros e suas características físicas, veremos que essa questão está presente: o livro da Unitas vem em formato de bolso, com uma capa de fundo vermelha, exclusivamente textual.42 Já a edição realizada pela Moderna Paulistana é mais elaborada, embora seja impressa em papel simples, seu tamanho é maior, possui uma foto de Marx, sobreposta à capa —sugere que poderia ser retirada do livro e guardada como uma recordação—, conta com 252 páginas e um índice detalhado do texto. Apesar do formato reduzido, a publicação da Unitas aproveita o espaço das orelhas do livro para, em uma, apresentar Karl Marx, a importância de seu legado filosófico e a obra resumida e, na outra, traz uma pequena explicação sobre a sociologia, que era o nome da coleção em que estava inserida. As duas orientações tem um caráter educativo, o pequeno texto se assemelha a um manifesto, destacando a função desta disciplina científica em contribuir para a compreensão da evolução e transformação da sociedade, finaliza indicando ao leitor: “Faça os estudos sociológicos, procurando enfronhar-se nos grandes problemas que preocupam a humanidade contemporânea”.
Infelizmente, não conseguimos mensurar a circulação das duas edições, e se foram reimpressas. O livro da Moderna fica muito isolado por não conhecermos outras informações de seu catálogo. Sobre a edição da Unitas há uma informação interessante, quando a massa falida da editora é apreendida pela repressão política da “Lei Monstro”, em 1936, não há nenhum exemplar de O Capital entre os mais de 20 mil volumes registrados.43 Se a primeira edição se esgotou entre 1932-1934 talvez não tenha sido reeditada, tanto pelas condições financeiras da editora, quanto por suas prioridades para outros títulos, de todo modo, verifica-se que o compêndio de Cafiero teve público e foi consumido.44
As publicações dos anos 1930 foram realizadas num período de relativo otimismo social e político marcado pelas consequências da Revolução de 1930, em que o PCB consegue angariar seguidores e, principalmente, simpatizantes:
O número de simpatizantes revela uma grande capacidade de organização de seu pequeno número de militantes, o que foi característica do partido durante toda sua história. Mas a influência é maior depois da Revolução de 1930 e durante a ANL. Ou seja, acompanha momentos de massificação política em geral.45
Acompanhando o ritmo artesanal do conjunto das atividades comunistas de edição, a primeira edição brasileira d’ O Capital surge cerca de dez anos após a fundação do partido, indicando que alguns anos de amadurecimento político foram necessários para que a principal obra de Marx entrasse no plano mais amplo de divulgação do marxismo e encontrasse um meio propício à sua recepção, tanto em termos organizativos do partido, quanto num espectro de influência social que ele propiciou ao repertório político do país.
A presença comunista não se desenvolveria sem contratempos, visto que seus princípios e ação constituem uma ameaça à ordem vigente. A crítica social marxista e o comunismo puderam circular com o mínimo de liberdade e reconhecimento institucional até 1935. Nesse ano, a repressão ao levante comunista, dirigido por setores da Aliança Nacional Libertadora (ANL), abre um período de perseguição política que dilacera a organização e seu principal articulador, o PCB, chegando ao ápice do fechamento do regime, em 1937, com a instauração do Estado Novo.46 Entre outras perdas, sua dispersa política editorial será destruída e mesmo as editoras comerciais que eventualmente pudessem se interessar nas obras do marxismo, não o fariam diante das possibilidades de repreensão. Os próximos resumos da obra prima de Marx só aparecerão em 1944.
As edições dos anos 1940 e 1950 diante da conformação de uma estrutura editorial comunista, a expansão do mercado de livros e do público leitor
O regime de controle e vigilância do Estado Novo caminhava para o seu fim, acompanhando a derrota do nazismo e fascismo na Europa que inaugurava um novo momento de aspiração por liberdades democráticas em todo o mundo. O PCB começa a se reestruturar, com muitas dificuldades, já que a ilegalidade e a repressão haviam desarticulado profundamente suas lideranças. A retomada das instâncias partidárias, que serão definitivamente reconhecidas em 1945, passará pela organização de suas instâncias de propaganda, formação e edição. Nesse novo momento, o partido irá abandonar aquela perspectiva “artesanal” de seus meios de publicação, profissionalizando a impressão de jornais e consolidando suas principais editoras, a Calvino e a Vitória.47
Se observarmos os livros publicados por elas até o fim da década de 1950, percebe-se que os títulos de Marx e Engels começam a aparecer com maior frequência, mas, no geral, a maioria das publicações permanecia vinculada à tradição doutrinária com livros do marxismo-leninismo ou publicações da URSS, atendendo ainda a demandas partidárias de formação e seguindo a linha editorial dos principais centros difusores do marxismo fora do Brasil. Nesse contexto, haverá espaço para a publicação de O Capital, a Calvino irá editar um resumo em 1945.48
Figura 4 – Capa da Edições Cultura
O texto escolhido será o de Paul Lafargue, primeiro e único identificado em nossas pesquisas, como parte de um livro chamado Carlos Marx, sua vida e sua obra, de Max Beer, acrescido do subtítulo “Com um Resumo de O Capital”.49 Embora o livro não se dedique exclusivamente à obra, parece-nos bastante importante que ele seja acrescido à obra do marxista austríaco, pois ela apresenta um histórico didático da formação do pensamento de Marx e do marxismo, considerando a vida do filósofo alemão, seu percurso intelectual e militante e os diferentes aspectos de sua teoria, divididos entre “Sociologia de Marx” e “Economia de Marx”, capítulo que encerra o livro de Beer, e antecede o resumo de Lafargue.
Figura 5 – Folha de rosto Edições Cultura
Editado dessa maneira, O Capital parece entrar no catálogo da Calvino como parte de um repertório de formação mais teórico, ao lado de um texto que introduz às origens do marxismo de maneira bastante elaborada, considerando vários aspectos de sua constituição sem se limitar a uma fórmula de pensamento monolítico. O livro faz parte da Coleção de Estudos Sociais que se coloca não apenas ao público militante, mas também a simpatizantes ou mesmo a leitores cultivados que pudessem ver em Marx um teórico de relevância a ser conhecido, atendendo a um aspecto comercial que também perpassa a política de edições de uma casa engajada.
Figura 6 – Capa 1ª Edição das Edições e Publicações do Brasil
O período da guerra foi marcado por uma ampliação do público leitor no Brasil, como consequência de iniciativas políticas educacionais que vinham da Revolução de 1930.50 Ao lado dessa transformação outros fatores beneficiaram o mercado editorial em seu conjunto, pois as restrições à importação de livros deslocaram a origem das importações da Europa, para Estados Unidos e Argentina, e principalmente, favoreceram o desenvolvimento da produção nacional. Esse cenário condiz com o perfil da publicação da Calvino, e sua dinâmica favoreceu ainda que editoras comerciais se ocupassem de edições marxistas, especialmente daquelas que possuíam certo grau de autoridade filosófico-científica.51 Outras três, edições resumidas d’ O Capital serão editadas nos anos 1940 por empresas não ligadas diretamente aos comunistas.
O resumo de Gabriel Deville é o primeiro a ser retomado, publicado pela Edições Cultura (figuras 4 e 5), em 1944 e, um ano depois, o compêndio de Carlo Cafiero é publicada pela Publicações e Edições Brasil (Figuras 6 e 7).52 Uma edição sob o selo E.C.L53 também apresentará o texto de origem italiana, ela não possui data, mas pudemos verificar em um dos exemplares da biblioteca de Edgard Carone uma anotação a lápis na folha de rosto, registrando “4/10/45”, por isso, achamos que pode ser incluída como uma edição desse período.
Figura 7 – Folha de rosto 1ª Edição das Edições e Publicações do Brasil
As duas primeiras edições destacam na folha de rosto o fato de serem edições revisadas, possivelmente em referência às edições dos anos 1930, mas nenhuma delas faz menção a um tradutor brasileiro, por isso, verificamos alguns trechos e índice para ver o quanto se diferenciavam das anteriores.54 Cotejando o texto da Edições Cultura com o da Editora Moderna Paulistana é possível inferir que houve, ao menos, uma boa revisão no que diz respeito à tradução portuguesa de Albano de Moraes. Além da modernização ortográfica, o principal indicador de alterações e até de uma possível nova tradução, encontra-se na substituição do termo “sobrevalor” por “mais-valia”. Essa interferência remete a uma perspectiva conceitual do marxismo em relação ao significado da expressão alemã e de sua passagem para outras línguas, o que pode ser considerada uma marca importante desta edição brasileira, as versões revistas de Cafiero e a publicação inédita de Paul Lafargue também adotam esta apresentação do conceito.
E edição da E.C.L é a mais simples, uma brochura pequena sem folha de rosto, orelhas, índice ou qualquer paratexto que ocupe suas páginas, apenas indica na contracapa o livro O Marxismo, volume que reuniria textos teóricos de Kautisky, Lênin, Plekanov e Rosa Luxemburgo.55 As outras duas edições são um pouco mais elaboradas e estão inseridas em coleções, embora a Edições e Publicações do Brasil mantenha o formato de bolso.56 A Cultura publica O Capital em sua Sociológica, coleção com 100 títulos de autores variados —Aristóteles, Cícero Campanella, Comte, Guizot, entre outros—, incluindo também outros teóricos do marxismo: Engels, Lênin, Trotsky e Stalin. Os exemplares desta coleção possuem papel de melhor qualidade que as anteriores, uma capa sem imagem, mas com certa preocupação estética em apresentar obras clássicas num emoldurado de arabescos. A segunda empresa publica o resumo de Cafiero na série Biblioteca Autores Célebres, sobre a qual os editores fazem questão de ressaltar a isenção ideológica e doutrinária, bem como o seu caráter eclético, qualificando o livro como de grande importância e “uma das mais discutidas teorias sociais, nesta época de evolução política e econômica”.
Os vestígios sobre o catálogo dessas duas editoras apontam para um perfil mais comercial do que político. A inserção da obra de Marx em coleções e o discurso de seus paratextos denotam certa necessidade em atenuar o viés ideológico da obra, dando a impressão de que assim seria melhor recebida por um público instruído que buscasse ampliar seus conhecimentos na área de filosofia, política e economia. A coleção da Calvino também apresenta o texto nesse sentido, mas sem o discurso neutralizador. A ausência de vínculos explícitos com o partido brasileiro não significa que essas publicações não tivessem algum tipo de ligação com seus militantes ou simpatizantes, era comum que a organização mantivesse órgãos em nome de terceiros, e também ocorria que editoras comerciais publicassem obras marxistas, mas não conseguimos afirmar que a Edições Cultura e a Edições e Publicações do Brasil fossem uma dessas parceiras.57
De todo modo, o espaço aberto para a recepção do marxismo, através da principal obra teórica de Marx, está relacionado à atuação que o PCB construía, desde a sua fundação, em um percurso concreto de ação política e da introdução sistemática de uma teoria que modernizara a cultura, o repertório conceitual e os debates dos meios políticos e da intelectualidade brasileira.58 A conjuntura do pós-Guerra certamente ampliava a necessidade de se conhecer as ideias que fundamentavam a existência não apenas da URSS, mas de um bloco econômico e político mundial polarizador das relações capitalistas. Nesse sentido, tanto a Edições Cultura quanto a Publicações do Brasil farão reedições dos seus livros. A primeira será realizada em 1946, pela Cultura sem nenhuma alteração ou revisão substancial e a Edições e Publicações do Brasil fará outras três reedições da tradução de Carlo Cafiero em 1957, 1958 e 1960, fato que a coloca em nosso mapeamento como a maior divulgadora d’O Capital nesse período.
Vale destacar a quebra no ritmo de publicação das reedições entre 1946 (segunda edição da Cultura) e 1957 (segunda edição da Edições e Publicações do Brasil). O clima de resgate da democracia no pós-guerra do Brasil passa por algumas intercorrências: o PCB entra novamente para a ilegalidade em 1947, sendo duramente perseguido, e o discurso anticomunista se acentua. É provável que a perseguição tenha afligido os editores, principalmente os comerciais para quem as publicações de Marx e do marxismo não tinham uma prioridade política, mas vê-se alterações no fluxo editorial da Vitória que apontam para a mesma situação.59 A retomada das publicações se dá num novo momento de efervescência e abertura ao debate político.60
O formato de bolso se mantém e a capa é simplificada, no lugar da foto de Marx, temos um fundo vermelho e verde com inscrições tipográficas, contendo o nome do autor, a coleção e o título da obra em destaque (figura 8). Curiosamente, a última reedição será feita com outro conteúdo. O resumo de Cafiero é substituído pelo de Gabriel Deville em 1962, na folha de rosto, a mudança é anotada, mas o vínculo com as publicações anteriores é mantido, com os dizeres: “5ª edição da obra. 1ª edição do novo original.” (figura 9). Entendemos essa anotação pouco convencional como uma estratégia de divulgação que aproveita o sucesso da obra em seu catálogo, frente às sucessivas publicações, mantendo o vínculo entre elas e, ao mesmo tempo, indica uma novidade ao leitor, acrescentando na mesma folha outro referencial de legitimidade que não aparece nas anteriores: “Da edição francesa de G.D, publicada na ocasião sob os auspícios e orientação do próprio Karl Marx”, essa frase é tirada do prefácio de Gabriel Deville. Interessante que o nome completo do autor não é identificado em nenhuma parte do livro, sendo citado sempre como “G.D”, mesmo na pequena nota aos leitores em que os editores explicam a substituição do texto “Conseguimos o original francês do notável sociólogo gaulês que publicou O Capital em resumo sob as iniciais G.D”.61
Figura 8 – Capa das Edições e Publicações do Brasil, a partir da 3ª Edição
Figura 9 – Folha de Rosto da 5ª Edição das Edições e Publicações do Brasil
É inevitável nos questionarmos sobre a persistência da editora em divulgar O Capital, pois como já dissemos não há evidências de ela que tenha se dedicado sistematicamente ao marxismo. Mais uma vez, somos impelidos a entender que havia um ambiente intelectual e político favorável à recepção da obra no mercado brasileiro. As características de outra edição dos anos 1950 reforçam esse cenário: no ano de 1956, a Editora Progresso, uma das mais importantes casas da Bahia,62 também publica a versão resumida de Gabriel Deville (figura 10); mais uma editora comercial com um catálogo voltado à divulgação do conhecimento filosófico-científico, chegando a fazer parcerias de coedições com a Universidade Federal de seu estado. Situada fora do principal eixo da produção livreira do país, Rio-São Paulo, ela nos apresenta uma demanda regional, pois dificilmente a edição da Progresso alcançou repercussão expressiva no restante do território.
Figura 10 – Capa da Livraria Editora Progresso
Se havia demanda por que nenhuma editora se dedicou à edição da obra completa até aqui? O empreendimento da tradução possivelmente deveria ser o maior entrave, pois exigia conhecimento técnico de uma língua estrangeira, de seu vasto repertório teórico, ao qual se somava um viés político da crítica social que o texto apresenta. Uma editora comercial poderia ter dificuldades em encontrar um indivíduo ou um grupo capaz de empreender tal tarefa, se encontrasse, seria um processo de intensa dedicação, possivelmente, custoso e arriscado. Embora com melhores condições de formação para a leitura, o público brasileiro ainda não havia se deparado com o conteúdo original, muito mais complexo do que os resumos tão bem recebidos. As editoras ligadas ao partido reuniam vantagens no sentido da produção editorial, pois os dirigentes e militantes com maior grau de instrução citavam as edições em francês e espanhol, demonstrando que as conheciam e liam, mas teriam de enfrentar o mesmo risco de suas congêneres no mercado. Sendo assim, só nos resta que a edição não aconteceu.
Apesar do crescimento do mercado editorial no Brasil e de sua estrutura entre os comunistas, os elementos anteriores parecem apontar para um comodismo nas formas de recepção da grande obra de Marx, muito compreensível para as editoras comerciais, mais pautadas no pragmatismo do lucro. Com relação ao PCB, vemos que essa postura é alimentada por uma linha política que carregava ainda aspectos de sua formação doutrinária e do perfil editorial dos centros difusores do marxismo no qual se referenciava, bem como pelas limitações dos leitores que especialmente na base do partido ainda encontrariam muitas dificuldades com os densos volumes de O Capital. Os resumos permanecem até boa parte dos anos 1960 como o meio de sua divulgação entre as publicações brasileiras.
Pós-64: O Capital, a Bíblia do proletariado em meio às edições universitárias.
De modo complexo, as condições para a publicação completa de O Capital começam a se alterar ao longo dos anos 1960. Em nível internacional, as organizações comunistas lidavam com as duras consequências da cisão fundamental que se causou a partir das denúncias de Krushev ao stalinismo. Esse fator foi fundamental para a consolidação de uma dinâmica descentralizada dos polos de difusão do marxismo e também foi responsável por colocar o movimento internacional em discussões teóricas que, diante da decepção, clamavam por certo retorno às origens: desvincular-se da doutrinação, em seu sentido mais negativo, passava a ser uma necessidade para os marxistas. Nacionalmente, essa ruptura se dava em meio a polarização social dos setores progressistas com a direita, que estabelece uma constante tensão nas instituições sob o discurso liberal e anticomunista, com tentativas de golpes até o que será realizado em 01 de abril de 1964.
As últimas edições de resumos d’O Capital antes da ditadura militar serão as da Edições e Publicações do Brasil, como já analisado, e ao seu lado, as da Editora Melso (figura 11) que lançará o resumo de Gabriel Deville em 1961, e uma segunda edição do mesmo texto em 1962.63 A capa apresenta o livro com uma imagem de Marx, em preto e branco, e o título da obra destacado em vermelho; a edição não conta com o prefácio de Gabriel Deville, ficando sem as explicações sobre o conteúdo resumido e mesmo a identificação deste autor – que só aparece na orelha final. A folha de rosto diz que é o texto fora revisado, sem indicar a tradução, mas o texto adota a expressão “sobrevalor”, ao invés de “mais-valia”, que vinha da tradução portuguesa, como se observou.64
Figura 11 – Capa da Editora Melso
Na primeira orelha, uma biografia do autor que é tratado como “verdadeiro gigante do pensamento universal, dedicou sua existência inteira à tarefa socialista”, diferente das edições anteriores esta apresentação remete ao jargão militante e à exaltação dessa característica frente à sua produção intelectual. Na segunda, uma apresentação do livro, colocando-o como necessário frente às disputas ideológicas “arrogantes” e um alerta às direções sobre “o sentido prático das reformas estruturais”, mais um paratexto que politiza o sentido da publicação. De todas as edições consultadas essa é a primeira referência à obra como um instrumento de retorno às origens filosófico-econômicas de Marx para a apuração de divergências, melhor compreensão da realidade e de um programa comunista, dialogando, justamente, com o novo momento que o marxismo enfrentava em nível internacional. Internamente, ela referencia o debate sobre as posições do partido diante das políticas reformistas propagandeadas por diversos setores.
Com o Golpe de 1964, intensificar-se-ia um processo de estigmatização do caráter subversivo de livros e impressos que carregassem essas ideias, chegando a ações de apreensão, censura e até queima de livros. As editoras comunistas foram fechadas e a edição de livros marxistas, a partir daí, adquirem outra dimensão do ponto de vista político e comercial. Tratava-se de uma atitude de risco para os negócios e até para a integridade física dos editores que empreenderam nesse sentido. O projeto de tradução completa de O Capital pela editora Civilização Brasileira enfrentará esse contexto de acirramento e perseguição e é antecedido, ainda, de outras três edições resumidas. As principais delas já se relacionam com a nova conjuntura política, uma será lançada pela Zahar (1967, figura 12), outra pela Bruno Buccini Editor (1968, figura 13) e uma terceira pela própria Civilização (1968, figura 14).
Figura 12 – Capa Zahar
Figura 13 – Capa Bruno Buccini
Figura 14 – Capa da Edição Resumida Civilização Brasileira
Nota-se que as edições em questão só serão realizadas alguns anos após a instauração da ditadura, contudo, num momento crucial do ponto de vista da repressão, pois em 1968 é outorgado o mais rigoroso decreto de alteração constitucional no período, o AI-5, que intensifica a perseguição, aprisionamentos e a censura. Essa atitude de ousadia diante do regime condizia com a postura dos editores Ênio Silveira (Civilização) e Jorge Zahar (Zahar) e, ao mesmo tempo, com o perfil construído por suas editoras desde sua fundação.65
Nos anos 1960, a Zahar e a Civilização Brasileira já eram reconhecidas por suas publicações universitárias, especialmente na área das ciências sociais. Eles acompanharam, ao lado de outras editoras, o movimento de ampliação dos níveis de escolaridade no país e a expansão de suas universidades, que previam um modelo de organização calcado na criação de faculdades de filosofia. Além de atingirem esse nicho comercial do mercado livreiro, os editores mantiveram, desde cedo, proximidade com o PCB e o debate político no país através do marxismo e ideias progressistas.66 O espírito crítico permeava as coleções de livros teóricos de humanidade, trazendo novas referências de crítica social, introduzindo, inclusive, maior número de traduções do mundo anglófono. Com o fechamento das editoras comunistas em 1964, esses sujeitos críticos e ativos passam a ocupar um lugar de enfrentamento político no mundo editorial. A atitude engajada condizia com a visão de mundo desses editores, ao mesmo tempo, em que dialogava com o público-alvo, pois o mundo universitário passa a incorporar o debate marxista nos anos 1960, buscando espaço em meio a uma conjuntura policêntrica de divulgação desse corpus teórico e político.67
A famosa coleção Biblioteca de Ciências Sociais vai abrigar a edição da Zahar de O Capital, na tradução de Ronaldo Alves Schmidt68, colocando-o ao lado de outros clássicos da literatura marxista que marcaram época, tais como A História da Riqueza do Homem, de Leo Huberman.69 Ela é apresentada ao leitor em tom comemorativo no contexto do centenário de publicação do primeiro volume por Marx, no século XIX e a orelha do livro faz questão de ressaltar sua importância histórica e legitimidade científica, comparando O Capital à Bíblia ou à Evolução das Espécies, de Darwin. O discurso é coerente com a necessidade de abrandar o impacto político do livro, bem como de dialogar com a sua inserção nos meios acadêmicos.
O texto editado é totalmente novo em relação aos resumos anteriores, pois não se trata de mais uma reedição de Cafiero ou Deville, mas sim de uma versão de Julien Borchardt,70 publicado pela primeira vez, em alemão, no ano de 1919.71 O conteúdo comportava os três volumes d’O Capital, condensados em 27 capítulos, ampliando o contato do leitor brasileiro com a obra de Marx. As inovações trazidas pela edição da Zahar apontam para a tendência acadêmica de recepção do marxismo que passa a demandar maior rigor nas leituras e conhecimento da teoria, mas também poderiam responder às necessidades das organizações políticas marxistas que se dividiam em polêmicas e já não possuíam mais um polo centralizador de referência editorial e teórica. Um movimento de ida aos textos de Marx a partir de edições mais próximas do original era coerente com essa realidade e a valorização dos textos marxistas, principalmente de seu corpus original, em traduções fiéis era uma demanda crescente. Os textos em alemão também estavam mais acessíveis.72
A editora Civilização Brasileira, atuando com um perfil muito próximo ao da Zahar, irá seguir no caminho de atender a essas demandas. Suas atividades no período entre 1964 e 1968 impressionam, chegando a uma média de publicação de um livro e meio por dia.73 O ritmo de impressões mostra o vigor e disposição de Ênio Silveira, que se coloca a serviço das ideias de esquerda, ele foi pessoalmente e empresarialmente o principal alvo de apreensões e censura no setor livreiro durante a ditadura, por isso, o projeto de publicação de O Capital pode ser vista como uma atitude de intervenção naquele momento político.74
A própria Civilização irá empreender a última publicação resumida do livro. O título na verdade remete a um guia: Leitura Básica de O Capital. Resumo e Crítica da Obra de Marx. O conteúdo se estrutura em duas partes, a primeira conta com itens de resumo de todos os capítulos, dos três volumes que compõem a obra, a segunda traz uma síntese da teoria marxista do valor. O autor do livro é Alfredo Lisboa Browne, professor de economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, elemento que é utilizado nas orelhas do livro como critério de legitimidade, repetindo o discurso de legitimidade científica vistos em outras edições, com um adicional: o autor é associado ao keynesianismo, colocando a crítica de Marx no patamar de outras que pensaram os problemas do capitalismo. Mais uma vez, as mensagens ao redor do texto principal se constituem como elementos de propaganda e ampliação do alcance da obra e, certamente, como atenuantes de represálias.
É interessante pensar neste resumo/guia como um elemento de estratégia da editora em vias do lançamento da obra completa. A edição não se chama O Capital, diferenciando-se das anteriores, e do livro que viria, abrindo novo caminho para os leitores que ainda não eram familiarizados com o conjunto da obra de Marx sem interferências na estrutura da obra. Por ser fiel à divisão de capítulos essa edição facilitaria, por exemplo, uma leitura paralela com o futuro livro. Além disso, pensando em termos políticos, Ênio Silveira poderia testar se a publicação de Karl Marx renderia o confisco de seus exemplares, como ocorrera em outras situações.
Enfim, a editora dirigida por Ênio Silveira se dedica à tradução e publicação dos primeiros dois livros, componentes do volume I, de O Capital (figuras 15 e 16). A responsabilidade pela tradução, direto do alemão, ficou sob a responsabilidade do economista Reginaldo Sant’Anna e as orelhas foram apresentadas por Cid Silveira,75 intelectual e economista próximo ao PCB e membro do corpo editorial da Civilização.76 Assim como o livro de Browne, O Capital sai em uma coleção, chamada Perspectivas do Homem e abandona qualquer característica de livro popular, ou “de bolso”, embora sirva a um modelo de divulgação da ciência. Todos os volumes são apresentados dentro dos parâmetros estéticos renovadores que a Civilização Brasileira havia implementado no Brasil, desde que foi assumida por Ênio,77 a capa é feita por Marius Laritzen Bern, que substituiu Eugênio Hirsh grande capista da editora até 1965.78 As capas de Bern variavam muito de livro para livro,79 e no caso de O Capital, o artista utilizou um padrão tipográfico, no qual os nomes do autor e obra se equilibram em relação ao tamanho da fonte, mas se diferenciam em relação as cores, com destaque a Marx, em vermelho, segundo pudemos observar. A autoridade de Marx era um referencial importante para atrair o interesse do público.
Figura 15 – Capa Civilização Brasileira, vol. 01
Figura 16 – Capa Civilização Brasileira, vol. II
O filósofo alemão estava em pauta na mídia daquele ano. Assim como a edição da Zahar, o lançamento do livro é anunciado nos jornais, em meio a um clima comemorativo, ou no mínimo de recordação, dos 150 anos de seu nascimento. Com o diferencial de que várias reportagens de jornais abordavam diretamente essa celebração polêmica: em O Jornal do Brasil, na edição de 14/09/1968 lê-se a manchete “O Marxismo de Cada Um”,80 reportagem que aborda as diferenças e semelhanças dos regimes comunistas na União Soviética, Coreia do Norte, China e Vietnã; o jornal Correio da Manhã em 07/05/1968 noticia os eventos comemorativos do aniversário de Marx na Alemanha, juntamente com a UNESCO.81 O nome de Karl Marx não era proibido e a lembrança de seu nascimento suscitava debates próprios do contexto da Guerra Fria e da posição do bloco comunista no cenário mundial. De alguma forma, autor e obra não podiam ser negligenciados, na medida em que compunham um repertório mínimo para a compreensão daquela realidade.
Em consulta ao acervo da Hemeroteca Nacional, encontramos poucas chamadas com a propaganda do livro no ano de 1968. A primeira delas, um anúncio feito pela própria editora, aparece no Jornal do Brasil, em 17/08/1968, com um tom provocativo quanto ao seu conteúdo: “Cem anos depois, este livro continua a inspirar os movimentos que pretendem transformar o mundo. O Capital.” (figura 17).82 No mesmo periódico, encontramos outras duas pequenas chamadas, uma delas sob o título “Enfim, O Capital!”, destacando o aspecto positivo da edição por ser a primeira publicação completa no país.83
Figura 17 – Publicidade de O Capital em
Jornal do Brasil, 17/08/1968.
Além disso, duas resenhas são publicadas no Correio da Manhã: a primeira, feita por Francisco Antonio Dória, em 24/11/1968, intitula-se “O Sentido de O Capital” e ressalta a importância e genialidade da obra, elogiando a tradução, mas faz críticas contundentes à apresentação feita por Cid Silveira, apontando erros conceituais e as polêmicas decorrentes destes erros dentro do marxismo.84 O autor das orelhas do livro tem seu direito de resposta na edição de 03/12/1968, em uma nota com o título “Engano sólido”. A segunda resenha foi feita pelo jornalista e marxista Edmundo Moniz. Em “O Capital, na íntegra”,85 Moniz elogia a tradução de Sant’Anna e afirma que a publicação representava “um dos empreendimentos editoriais mais notáveis dos últimos anos”, devido à sua inexistência em língua portuguesa e à atualidade do pensamento de Marx.86 A resenha ainda se preocupa em apresentar o livro e discutir elementos básicos de seu pensamento.
Apesar do contexto repressor, no qual certamente havia um constrangimento para propaganda e circulação da obra, essas aparições em jornais apresentam indícios importantes de sua divulgação e recepção pelo público. E dentro do mesmo contexto, podemos verificar uma recepção positiva dos volumes: em 23/09/1968, O Capital aparece entre os 08 livros mais vendidos do Rio de Janeiro em levantamento feito pela Tribuna da Imprensa;87 em 19/10/1968 o Jornal do Brasil o coloca entre os 05 mais vendidos em Belo Horizonte,88 a segunda notícia indica que o livro atingia um nível de repercussão, inclusive fora da cidade em que se localizava a editora.
Entre o reconhecimento como uma teoria científica e a formação de uma ideologia subversiva, a primeira edição completa de O Capital pôde circular com relativa tranquilidade:
Apesar de livros de Marx serem editados, não era uma boa ideia andar com eles ou folheá-lo publicamente numa livraria. Muitas obras tinham que ser pedidas a um livreiro conhecido, pois não estavam expostas nas bancadas ou estantes.89
Corroborando com essa ideia, as listas disponíveis em estudos sobre o livro na Ditadura Militar fazem crer que nenhuma publicação de Marx tenha entrado nas listas dos livros recolhidos ou proibidos pelo regime, enquanto Che Guevara ou Carlos Marighela foram alvos desse tipo de perseguição direta, e as Obras Completas de Lênin chegaram a ser recolhidas e queimadas.90 Esse fato não impedia que inquéritos e denúncias contra militantes incluíssem, como parte da acusação, o porte de livros marxistas, em geral, e de livros de Marx, inclusive, O Capital.
Entre as concessões e adversidades do período, a Civilização Brasileira publicou seis edições do livro, e vendeu 28 mil exemplares entre 1968 e 1981, em seguida, a Difusão Europeia do Livro, que comprou a Civilização, imprimiu outros 25 mil. Atravessando as barreiras da repressão nacional, O Capital cruzou o oceano e chegou até Portugal, onde vendeu cerca 20 mil exemplares.91 Desse modo, a edição brasileira de 1968 se coloca como um marco editorial da recepção de O Capital no Brasil e em todo o mundo lusófono, pois a edição brasileira foi a primeira tradução completa em língua portuguesa.92
O acesso ao conteúdo integral da obra prima de Marx é colocado à nossa intelectualidade e organizações em meio às publicações universitárias que dinamizam o mercado editorial brasileiro. Essa condição expressava a tendência do fortalecimento de um marxismo acadêmico que se desprendia, parcial ou totalmente, de organizações políticas e, mesmo que se vinculasse a elas, buscava se desprender do viés doutrinário que o a produção do período anterior passou a representar. Essa realidade representava um marco no processo de difusão internacional do marxismo, em termos editoriais e teóricos, mas também em termos de seu uso político – pois estas questões nunca estão totalmente dissociadas –, respondendo ao movimento de produção policêntrica e sua necessidade em reivindicar o retorno ao corpus original de uma tradição que ainda movia diversas organizações e instituições de resistência política, e deveria tomar novos rumos.
Nesse sentido, o ambiente universitário, que nos anos 1960 já constituía um sistema de formação, produção e debate intelectual no Brasil, conseguiu oferecer as melhores condições para o projeto de publicação completa da obra. Desde a possibilidade em conseguir um tradutor que não fosse apenas um conhecedor do alemão, mas também alguém diplomado em economia, até a existência de um público leitor mais robusto formado ou em formação nas diversas disciplinas que o livro tocava. Mas insistimos que o contexto político do país e a relação das instituições universitárias e seus membros com a política não permitem que a publicação seja vista unicamente como um empreendimento de fins acadêmicos. A ditadura militar combateu, mas não conseguiu suplantar a politização da sociedade, especialmente, dos setores que naquele momento acessavam os meios universitários e, através deles faziam política. Proliferavam-se formas de resistência e, sendo assim, a edição universitária d’O Capital também serviria a militantes, grupos e organizações marxistas. A ousadia de sua publicação por um editor como Ênio Silveira já poderia ser vista como uma atitude de resistência política.
Contraditoriamente ao que poderíamos inferir num primeiro momento, o aspecto de publicação universitária talvez colocasse a obra, pela primeira vez, ao público brasileiro como escritura sagrada, como a Bíblia do proletariado. A maioria dos resumos, como vimos, colocava em seus paratextos a notabilidade científica e teórica do livro, mas por diversos fatores isso não servia ao enquadramento da obra como a fonte mais segura e precisa à crítica social e, no limite, para o seu uso político. A edição completa de O Capital poderia não destinar-se diretamente ao proletariado e, certamente, encontraria dificuldades em inserir-se em seus círculos de leitura, contudo, sem as interferências e mediações de um resumo poderia ser recebida como a portadora mais fiel dos fundamentos do marxismo e esclarecedora dos meios e fins de seus seguidores naquele momento.
A edição de 1968 materializa, pela primeira vez, a referência desta uma tradição intelectual e política e ocupa o lugar de um ícone “mais exaltado do que lido”, tal qual a Bíblia em nosso ver, entre os seus interlocutores no Brasil. Se estes apenas em partes muito reduzidas, ou quase nulas, eram membros do proletariado, ocupavam-se dele em circunstâncias diversas: queriam estar ao seu lado, queriam compreendê-lo em termos sociológicos, queriam formá-lo à luz de suas verdades.
Caminhos editoriais e políticos: aspectos gerais da difusão d’ O Capital no Brasil entre 1931-1968
Considerando a análise traçada pelo artigo, gostaríamos de sintetizar algumas características gerais que definem a trajetória das edições d’O Capital no Brasil até o ano de 1968. Desde o início, assumimos que os resumos foram a principal forma de sua divulgação ao público brasileiro, fato que não destoa de uma dinâmica geral de recepção da obra em outras regiões do mundo, mas que no Brasil adquire um tempo específico a partir da entrada tardia do marxismo em seus meios intelectuais e políticos (tabela 1).
O vínculo estreito entre a difusão da teoria marxista e a luta social, quando a Revolução Russa já era uma realidade, relegaria ao PCB a responsabilidade de organizar uma estrutura editorial inédita, pautada em prioridades políticas e em uma rede internacional definida por questões organizativas e doutrinárias, que não estariam contempladas de imediato em uma obra com o caráter teórico e até físico d’O Capital. Essa marca de origem, ligada à sua difusão internacional, perpassa a história das edições marxistas no Brasil e parece ter sido importante na construção dos caminhos pelos quais a obra prima de Marx passaria no mercado brasileiro. De modo geral, podemos concluir que o PCB e as estruturas editoriais associadas a ele não foram responsáveis pelo movimento de divulgação e recepção de O Capital no Brasil. Apenas 04 das 17 edições resumidas podem ser relacionadas às iniciativas das redes de edição comunistas e de seus simpatizantes.
O interesse pela obra, contudo, é significativo quando vemos que ela foi editada de maneira recorrente e relativamente equilibrada no período, sem faltar a nenhuma das décadas. É possível perceber também que, como reflexo desse interesse, os editores aproveitam-se dos momentos de liberdade e efervescência política para dar vazão a essa demanda até 1964 e, no caso das edições posteriores, incluindo a edição completa, alguns sujeitos se afirmam diante das adversidades impostas pelo regime ditatorial e levam a frente esses projetos. Esse cenário não pode ser dissociado da ação dos comunistas, pois a difusão do marxismo no Brasil se dá através de sua organização como parte de um processo de modernização econômica e social do país. A transformação da cultura operária atinge as diversas esferas do meio político e intelectual que passam a considerar o repertório marxista como uma teoria entre outras.
É compreensível que a principal obra de Marx, imbuída de antemão em um invólucro de complexidade e autoridade, fosse o principal instrumento dessa assimilação ampla e, de algum modo, necessária ao público leitor, tornando-se interessante às editoras comerciais, conforme indicam os elementos de construção das edições analisadas (coleções, orelhas, notas, notícias, etc.). De modo complexo, essa diretriz que pudemos identificar não esvazia o caráter político da obra, na verdade, podemos entender que elas interagem e se reforçam na medida em que a preocupação recorrente em alegar a dimensão científica do pensamento de Marx, indica que a sua força ideológica e simbólica estavam presentes na sociedade. Corrobora para essa complexidade constatarmos que boa parte das edições é realizada em formato de bolso (tabela 2) e, entre elas, a maioria é feita a partir do texto de Carlo Cafiero –o texto mais sintético–, mostrando que as editoras comerciais consideravam tanto os aspectos de autoridade teórica, quanto as possibilidades de seu uso político e popular.
Nos anos 1960, a diversidade de edições e o surgimento de publicações mais completas apontavam para uma potencialização dos fatores que levaram à divulgação da obra até ali. De um lado, um público leitor mais preparado e uma institucionalidade consolidada em torno das universidades, de outro, uma dinâmica internacional de polêmicas e cisões dentro do marxismo e seus reflexos no cenário nacional. Não havia um ambiente confortável, pois, em plena ditadura, a repressão se ocupava de interferir nesse meio, mas o risco no empreendimento possuía um viés simbólico de afrontamento e resistência, certamente, contava com as potencialidades de acolhida do livro e possíveis brechas para a tolerância de sua circulação, decorrentes de seu caráter teórico.
Apesar das características doutrinárias que normalmente se definem para a entrada sistemática do marxismo no Brasil, a assimilação da crítica de Marx ao capitalismo passou por um movimento particular de recepção de sua obra mais exaltada. É possível apreender no período abordado uma dinâmica das edições brasileiras d’ O Capital, mesmo que não tenham sido promovidas diretamente por uma estrutura editorial voltada à propaganda marxista, que dialoga com as conjunturas políticas do país, suas condições intelectuais e materiais de produção, e constitui um lugar amplo de seu reconhecimento. Outras edições completas foram realizadas após 1968, valendo-se de um legado construído por suas ancestrais, construindo novos caminhos e atendendo a demandas de um mercado que ainda considera o marxismo como uma teoria válida para a análise crítica da realidade e a transformação social.93
Tabelas
Tabela 1 Circulação de Edições Resumidas d’O Capital por décadas (1930-1960)
Edição |
1930 |
1940 |
1950 |
1960 |
Total por Edição |
Gabriel Deville |
01 |
02* |
01 |
04* |
08 |
Carlo Cafiero |
01 |
02 |
02 |
01 |
06 |
Paul Lafargue |
- |
01 |
- |
- |
01 |
Julien Brochardt |
- |
- |
- |
01 |
01 |
Alfredo Browne |
01 |
01 |
|||
Total por período |
02 |
05 |
03 |
07 |
17 |
*com reedições.
Tabela 2 Edições Resumidas em Formato de Bolso por décadas (1930-1960)
Edição/Década |
1930 |
1940 |
1950 |
1960 |
Total por Edição |
Gabriel Deville |
- |
- |
01 |
01 |
02 |
Carlo Cafiero |
01 |
02 |
02 |
01 |
06 |
Total por período |
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Referencias Bibliográficas
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* USP-FAPESP
1 A elaboração deste artigo foi um desdobramento da comunicação realizada no IX Congresso de História Econômica da USP 2018, o qual homenageava os 200 anos do nascimento de Karl Marx. Para sua redação, a autora contou com o apoio do acervo da Biblioteca Edgard Carone, pertencente ao Museu Republicano da Universidade de São Paulo. Agradeço, especialmente, ao funcionário José Renato, com quem pude contar para o acesso aos materiais do acervo.
2 Eric Hobsbawm, “A fortuna das edições de Marx e Engels”, en Eric Hobsbawm (org.), História do Marxismo, vol. 01, cap. 11, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p. 424.
3 Ibídem, p. 427.
4 No geral, podem-se conceber quatro conjunturas distintas da difusão internacional do marxismo até 1989: a Época de Marx; II Internacional; III Internacional, Guerra Fria ou policentrismo. Essa elaboração que adotamos para nossa análise é apresentada por Lincoln Secco, “Notas para a história editorial de O Capital”, en Revista Novos Rumos, ano 17, nº 37, Marília, 2002, p. 11. Mas ela se referencia em análises anteriores que não apresentam essa denominação, mas identificam delimitações temporais que coincidem com ela. Ver: Eric Hobsbawm, op. cit., e Edgard Carone, O Marxismo no Brasil, das origens a 1964, Rio de Janeiro, Dois Pontos, 1986.
5 A ideia de um corpus principal de textos clássicos é formulada por Engels e apresentado por Hobsbawm, como citamos anteriormente. Agora passa a ser utilizado pela autora - com variações como “corpus fundador” ou “corpus originário” - como recorte essencial dos movimentos de difusão de obras marxistas.
6 Expressão utilizada pelo próprio Marx no processo de redação e tratamento da obra. Não queremos aqui negligenciar o debate acerca de seu caráter multidisciplinar e mesmo sobre o sentido que Marx concebia ao termo que, certamente, se estende a outros livros. Sobre isso ver Francis Wheen, O Capital de Marx. Uma Biografia, Rio de Janeiro, Zahar, 2006. p. 8.
7 Ibídem, p. 7.
8 Horácio Tarcus, La Biblia del Proletariado, Buenos Aires, Siglo XXI Editores, 2018, p. 6.
9 As exceções são as traduções russa (1872), sucesso editorial com 03 mil exemplares vendidos em menos de um ano (Francis Wheen, op. cit.), e a argentina por tradução de Juan B. Justo, que circulou entre 1897-1898 em fascículos no periódico La Vanguardia e em edição completa a partir de 1899. Ver Horácio Tarcus, op. cit. p. 39.
10 Francis Wheen, op. cit., pp. 5-6.
11 Pierre Bourdieu, “Les Conditions sociales de la circulation internationale des idées”, en Actes de la recherche en sciences sociales, vol. 145, décembre 2002, pp. 3-8. O autor constrói a formulação de que a circulação de ideias não é espontaneamente internacional, (p.4).
12 Carlo Cafiero, Il Capitale di Carlos Marx. Brevemente Compendiato. Livro Primo. Sviluppo dela Produzione Capitalista, Milão, C. Bignami e C. Editore, 1879. O texto se refere exclusivamente ao primeiro volume, do livro I, possui dez capítulos e um pequeno prefácio, totalizando cerca de 120 páginas na primeira edição italiana datada de 1886. Sobre isso ver Franco Angeli, Storia del Marxismo Italiano. Dalla Origene alla Grande Guerran, Milão, s.d.
13 Gabriel Deville, Le Capital de Karl Marx. Résumé et Accompagné d’um Apperçu sur Le Socialisme Scientifique, Paris, Henri Oriol, 1883. Disponível em https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5495207k/f7.item.r=preface.langFR (acesso em 06/12/2018); Karl Marx, Le Capital. Extraits par Paul Lafargue, Paris, Guillomin, 1894.
14 Horácio Tarcus, op. cit., p. 6.
15 Lucien Febvre e Henri Jean Martin, O Aparecimento do livro, São Paulo, Edusp, 2017.
16 Edgard Carone, op. cit..
17 Gerard Genette, Paratextos Editoriais, Cotia, Ateliê Editorial, 2009. Genette define o paratexto como todas informações e referências que se situam ao redor ou para além do texto principal que constitui o livro, em suas palavras: “(...) é aquilo por meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal aos seus leitores, e de maneira mais geral ao público.” (p. 19). Ele pode estar situado no próprio livro –informações catalográficas, orelhas, prefácios, etc.–, e será chamado epitexto, ou fora do livro – resenhas, artigos, notas, notícias, etc.– e será chamado peritexto. Consideraremos as duas categorias como for pertinente aos resultados de nossas pesquisas.
18 Lincoln Secco, A Batalha dos Livros, Cotia, Ateliê Editorial, 2017, p. 33.
19 A referência é apresentada por Edgard Carone, op. cit., p. 60. Sobre o predomínio da tradição reformista, e outras correntes de ideias do século XIX, entre os socialistas no Brasil ver: Marcos Del Roio, “Os comunistas, a luta social e o marxismo (1920-1940)”, en Daniel Araão Reis e Marcelo Ridenti, História do marxismo no Brasil, vol. 5, Campinas, Editora da Unicamp, 2007, pp. 14-15; e Lincoln Secco, A Batalha dos Livros, op. cit., p. 41.
20 Estudo da brochura encontra-se em Felipe Castilho, Octávio Brandão e as origens do marxismo no Brasil, Cotia, Ateliê Editorial, 2019, p. 143. O folheto sai em 1922, antes da adesão de Brandão ao comunismo, mas deveria compor um repertório anterior do militante.
21 Ela divulga o envio de um exemplar pelo livreiro Manoel Nogueira de Souza, da Livraria Econômica, trata-se de O Capital, de Carlos Marx, tradução do resumo de Gabriel Deville por Albano de Moraes, feita no mesmo ano. Jornal do Recife, 22/11/1912, p. 2. Disponível em https://memoria.bn.br/DocReader/705110/58076; acesso em 06/12/2018.
22 O Brasil tem índices de analfabetismo alarmantes que só começam a ser revertidos nos anos 1940: 66% em 1900; 65% em 1920; 56% em 1940; 51% em 1950. Valores para população de 15 anos ou mais. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
23 Lincoln Secco, A Batalha dos Livros, op. cit., p. 31.
24 As organizações de trabalhadores e suas ideias circulam prioritariamente nos meios urbanos, com destaque para as capitais dos estados e, sobretudo, os centros econômicos mais importantes dessa época, Rio de Janeiro e São Paulo. Apesar de a maior parte da classe trabalhadora brasileira se concentrar nas áreas rurais até meados do século XX, é nas áreas urbanas que se estabelece uma dinâmica social favorável à sua organização. Do ponto de vista estrutural, ali se desenvolviam as relações de trabalho modernas, e suas contradições se colocavam de maneira mais explícita.
25 Marcos Del Roio, op. cit., p.15.
26 Os sujeitos ativos na divulgação de ideias e nas iniciativas de formação eram, normalmente, dirigentes oriundos de setores mais especializados da classe, como gráficos, ou indivíduos de classe média que se juntam ao movimento.
27 Além da tradução portuguesa O Capital aparece nas citações em francês, como apontado, e algumas vezes em espanhol. Na bibliografia de Rússia Proletária, primeiro livro de Octávio Brandão após sua adesão ao comunismo, o autor cita uma edição em espanhol, com origem em Valência (Felipe Castilho, op.cit., p. 37). É possível também que a edição argentina tenha circulado nos meios intelectuais e políticos do país dada a importância desse centro editorial na América Latina desse período. Ver: Horácio Tarcus, op. cit..
28 Lincoln Secco, A Batalha dos Livros, op. cit., p. 52.
29 Na América Latina Argentina e Uruguai, na Europa, sobretudo, a França.
30 Expressão utilizada por Octávio Brandão em discussão com a Internacional Comunista sobre as políticas de agitação e propaganda do partido brasileiro. Ver: Felipe Castilho, op. cit., p. 82.
31 Lincoln Secco, op. cit., p. 49.
32 Edgard Carone, op. cit., p.63.
33 Edgard Carone, op. cit., pp. 185-196.
34 Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto Comunista, Tradução da edição francesa de Laura Lafargue, revista por Engels, por Octávio Brandão, Porto Alegre, Sul-Brasil, 1924.
35 Marcos Del Roio, op. cit., p. 23.
36 O levantamento de Edgard Carone, em O Marxismo no Brasil, op. cit., diz que a edição foi realizada no ano de 1934, contudo, a primeira notícia encontrada sobre ela é de 1931.
37 Outras editoras próximas aos comunistas nos anos 1930: Pax e Cultura Brasileira.
38 A Gazeta, 24/11/1931, p. 7. Disponível em https://memoria.bn.br/DocReader/763900/37418 ; acesso em 06/12/2018.
39 Intelectual e político português. Fundador do jornal, A Reforma Social, em 1910, que se pretendia ser porta-voz da corrente radical socialista no país.
40 O protagonismo econômico alcançado por São Paulo em fins do século XIX e início do século XX criou condições para o desenvolvimento de uma dinâmica cultural da cidade que atraiu para si discussões sobre identidade nacional, progresso e desenvolvimento. O movimento modernista, com expressão na Semana de Arte Moderna de 1922, cumpre um papel importante nesse processo, constituindo um polo de rivalidade da capital paulista com o Rio de Janeiro, então capital federal. No bojo dessas discussões e disputas modernizadoras, a arte passava também por questões políticas e alguns dos artistas do modernismo paulista foram explicitamente ligados ao PCB tais como Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti.
41 A editora, fundada por Salvador Cosi Pintaúde, possuía relação com a Liga Comunista, que representava a Oposição de Esquerda no Brasil, da qual seu fundador era membro. Depois, ele se afasta da organização, mas continua próximo de um ativismo comunista em torno do PCB. Daines Karepovs, “Gráfico Editora Unitas e seu Projeto Editorial de Difusão do Marxismo no Brasil dos Anos 1930”, Marisa Midore Deaecto e Jean-Yves Mollier, Edição e Revolução. Leituras Comunistas no Brasil e na França, Cotia, Ateliê Editorial, Cotia, Belo Horizonte, Ateliê Editorial e Editora da UFMG, 2013, p. 72.
42 A editora Unitas vendia seus exemplares por quatro mil-réis.
43 Lei de Segurança Nacional votada em abril de 1935 definia crimes contra a ordem política e social. É endurecida em setembro de 1936 com a criação do Tribunal de Segurança Nacional. Sobre a referida lista de livros apreendidos ver: Daines Karepovs, op. cit., pp. 112-113.
44 1934, ano que a Unitas vai à falência.
45 Lincoln Secco, A Batalha dos Livros, op. cit., p. 99. Explicação: ANL – Aliança Nacional Libertadora, organização política de frente ampla integrada pelo PCB. Organizada a partir de 1934, com fundação oficial em março de 1935.
46 A Revolução de 1930 é o processo que leva Getúlio Vargas ao poder pela primeira vez, encerrando o período que se convencionou chamar de República Velha no Brasil. A partir daí há uma divisão política da chamada Era Vargas: Governo Provisório (1930-1934), Período Constitucional (1934-1937) e o Estado Novo (1937-1945). Neste último momento, em meio ao clima de perseguição ao comunismo o presidente Getúlio Vargas decreta um estado de exceção no país, e outorga uma nova constituição com características ditatoriais.
47 A Calvino foi fundada em 1932, mas atinge expressão após 1942. Além dessas, outras editoras voltadas às publicações comunistas são a Leitura e a Horizonte. Edgard Carone, op. cit., pp. 67-71.
48 A Calvino publica 06 títulos de Marx e 03 de Engels, entre 1944 e 1946; a Vitória irá utilizar os textos do Instituto Marx-Engels de Moscou e publica 01 título de Engels em 1945; 04 títulos de Marx entre 1946-56; duas edições do Manifesto Comunista (1948 e 1954) e as Obras Escolhidas de Marx e Engels em 1956.
49 Max Beer, Carlos Marx, sua vida e sua obra. Com Resumo de O Capital, Rio de Janeiro, Calvino, 1945. A folha de rosto indica a tradução de Abguar Bastos político e intelectual paraense, foi um dos fundadores da ANL, como membro do Partido Liberal Pará, pelo qual se elegeu deputado em 1935. Foi perseguido e preso durante o Estado Novo. Com o fim do regime, volta à política na fundação do Partido Socialista, vai para o Partido Trabalhista do Brasil e exerce mandatos legislativos e outros cargos nos governos posteriores.
50 Sobre as políticas de educação e cultura após a Revolução de 1930, ver: Fernando Azevedo, A Cultura Brasileira, Brasília, Editora da UNB; Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 1996. Já se falou sobre as altas taxas de analfabetismo no Brasil até os anos 1940. Nas décadas seguintes, vê-se uma alteração nesse cenário, passando de 51% de analfabetos em 1950, para 44% em 1960. Ressalta-se que os índices ainda estavam longe do ideal, mas caminhavam em passos mais rápidos do que nos períodos anteriores. As desigualdades econômicas e sociais nas diversas regiões do país criam um cenário de desigualdade dentro dessa melhora: São Paulo alcança índices muito melhores com 35,5% de analfabetos em 1950 e apenas 26% em 1960.
51 Edgard Carone, op. cit., p. 73.
52 Edições Cultura, não confundir com Editora Cultura Brasileira, dos anos 1930.
53 A sigla E.C.L não pode ser identificada. A primeira editora que tentamos relacionar fora a Calvino (Edições Calvino Limitada), contudo nenhuma de suas publicações é identificada com essa sigla, tampouco com o símbolo que se vê na capa desta edição. O levantamento de Edgard Carone também a coloca como uma editora a parte.
54 A revisão das Edições e Publicações do Brasil indica o nome de Afonso Bertagnoli. Não encontramos uma biografia do referido, mas ele aparece como tradutor de diversos livros da editora, sobretudo, obras de autores alemães como Schopenhauer e Kant.
55 Edgard Carone elenca a publicação de um texto de Riazanov em 1945.
56 Com duas possibilidades de encadernamento e preço, vendida por Cr$ 13, em brochura, e Cr$ 18, se encadernada.
57 Sobre a Edições Cultura, responsável pela publicação de 1944, cabe destacar a existência de outras publicações marxistas, algumas deles na mesma coleção d’ O Capital e outras de modo isolado como Plekhanov, Gorki, Adoratski, Nin e o Código da Família da URSS. Segundo Carone, a publicação de Adoratski é o livro Como Ler O Capital, demonstrando certa preocupação com divulgação da obra e uma orientação acerca de seu conteúdo.
58 Marcos Del Roio, op. cit., p. 25.
59 Flamarion Maués. “A Editorial Vitória e a Divulgação das Ideias Comunistas no Brasil (1944-1964)”, Marisa Midori Deaecto e Jean-Yves Mollier, Edição e Revolução, op. cit., p. 149.
60 Mesmo com o PC oficialmente na ilegalidade, a perspectiva econômica do desenvolvimentismo e da promoção de reformas sociais define a ação do partido sob o viés de uma política conciliatória com os setores considerados progressistas. O PCB se envolveu nas campanhas nacionalistas, e deu apoio às candidaturas de Juscelino Kubistchek e João Goulart, respectivamente à presidência e vice-presidência, em 1956.
61 Há uma segunda edição portuguesa de O Capital - tradução de Emília Araújo Pereira, também publicada em 1912, pela Editora Guimarães - em que as referências de Gabriel Deville aparecem apenas com as iniciais G.D.
62 A Progresso conseguiu construir um catálogo com cerca de 450 títulos entre 1944 e 1960, período em que foi dirigida por Manoel Pinto de Aguiar. Flávia Goulart Mota e Susane Santos de Barros, “Panorama da História da Editoração em Salvador/ Bahia”, em I Seminário Brasileiro sobre o Livro e História Editorial, Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, 2004.
63 Segundo levantamento de Edgard Carone, a Melso é uma editora próxima ao PCB e possuí outras 10 publicações marxistas, incluindo dois autores brasileiros: Agildo Barata e Moniz Bandeira.
64 Não tem indicação de tradutor. Revisor Wilton Morgado sobre quem não encontramos informações biográficas.
65 A publicação da Bruno Buccini Editor é um pouco nebulosa. Trata-se, na verdade, de uma nova impressão do texto apresentado pela Melso em 1961 e 1962, até as orelhas são idênticas e o registro na folha de rosto menciona ser uma terceira edição. Não conseguimos concluir qual a relação deste editor com a Melso ou se ela teria sido comprada por ele, as poucas informações sobre sua biografia não o aproximam da atividade comunista.
66 Laurence Hallewell, O Livro no Brasil, sua História, São Paulo, Edusp, 2012, p. 592. O autor usa a expressão “Editoras Progressistas” para caracterizar as editoras que surgem no contexto pós-Estado Novo.
67 É um movimento sensível à difusão do marxismo em nível nacional e internacional. Ver: Eric Hobsbawm, op. cit., pp. 440-441; Edgard Carone, op. cit., p. 74.
68 Sem informações biográficas.
69 Leo Huberman, A História da Riqueza do Homem, Rio de Janeiro, Zahar, 1962. O livro é citado como incitador de núcleos de estudantes de esquerda durante a ditadura. Ver: Paulo Roberto Pires, op. cit..
70 Karl Marx. Das Kapital. Kritik der politischen Oekonomie. Gemeinverständliche Ausgabe, besorgt von Julian Borchardt, Neuzeitlicher Buchverlag, Berlin-Schöneberg, 1919.
71 Segundo a orelha do livro, a edição usada pela Zahar é de 1931.
72 A ideia de retorno a Marx e da necessidade em compreender suas formulações com fidelidade aos escritos originais motiva jovens professores e estudantes da universidade a estudar, inclusive os textos em alemão ou as traduções francesas. O chamado Seminário Marx, formado por intelectuais da universidade de São Paulo, tem sido estudado como expressão desse movimento de entrada do marxismo no na academia. Ver: Lidiane Soares Rodrigues, A produção social do marxismo universitário em São Paulo: mestres, discípulos e “um seminário” (1958-1978), São Paulo, USP, 2011.
73 Jerusa P. Ferreira (org.), Editando o Editor. Ênio Silveira, São Paulo, Edusp, p. 105. O Ano de 1968 foi o auge do número de edições publicadas pela civilização brasileira, com 80 novas obras, entre as quais figurava O Capital. Após o AI-5 a editora passa a ser boicotada para acessar linhas de crédito no Banco do Brasil, conforme nos fala Laurence Hallewell, op. cit., p. 639.
74 Sandra Reimão, Repressão e Resistência, Censura de Livros na Ditadura Militar, São Paulo, USP, 2011, p. 10.
75 Economista e tradutor. Fez carreira como funcionário do Ministério da Fazenda. O texto é traduzido da 4ª edição alemã, publicada em 1890. Os livros II e III de O Capital serão publicados pela mesma editora, respectivamente, nos anos de 1970 e 1973. O segundo livro, em um volume, e o terceiro, em dois volumes, ambos traduzidos por Reginaldo Sant’Anna, seguindo a mesma estética do primeiro volume com capa de Marius Bern.
76 Rodrigo Czajka, “A Batalha das Ideias: Resistência Cultural e Mercado Editorial Brasileiro na década de 1960”, em Marco Roxo e Igor Sacramento (org.), Intelectuais Partidos. Os Comunistas e as Mídias no Brasil, Rio de Janeiro, Faperj/E-papers, 2012, p. 212.; Daines Karepovs, Luta subterrânea: o PCB em 1937-1938, São Paulo, Editora da Unesp, 2003, p. 138.
77 Laurence Hallewell, op. cit., pp. 598-599.
78 Artista de origem húngara e dinamarquesa, nascido no Rio de Janeiro em 1930. Estudou na Escola de Belas Artes no ano de 1948; em 1950 mudou-se para o Recife onde atuou com a Sociedade de Arte Moderna do Recife, e foi um dos fundadores do Ateliê Coletivo. Carina da Rocha Naufel, A Capa Convida. O Design Gráfico de Marius Lauritzen Bern para a Editora Civiliação Brasileira, Campinas, Unicamp, 2012, p. 10.
79 Carina da Rocha Naufel, op. cit.passim.
80 Disponível em https://memoria.bn.br/DocReader/030015_08/121627, acesso em 06/12/2018.
81 Disponível em https://memoria.bn.br/DocReader/089842_07/91742, acesso em 06/12/2018.
82 Jornal do Brasil, Suplemento do Livro, Rio de Janeiro, 17/08/1968, p. 10. Disponível em https://memoria.bn.br/DocReader/030015_08/120242; acesso em 06/12/2018.
83 Jornal do Brasil, Caderno b, Rio de Janeiro, 05/09/1968, p. 2. https://memoria.bn.br/DocReader/030015_08/121192; acesso em 06/12/2018.
84 Francisco Antonio Dória, “O Sentido de O Capital”, Correio da Manhã, 4º Caderno, Rio de Janeiro, 24/11/1968, p. 2. Disponível em https://memoria.bn.br/DocReader/089842_07/97631; acesso em 06/12/2018.
85 Edmundo Moniz. “O Capital na Íntegra”. Correio da Manhã, 4º Caderno, Rio de Janeiro, 01/12/1968, p. 5. Disponível em https://memoria.bn.br/DocReader/089842_07/97840; acesso em 06/12/2018.
86 Edmundo Moniz, op. cit..
87 Tribuna da Imprensa, 2º Caderno, Rio de Janeiro, 25/09/1968, p. 2. Disponível em https://memoria.bn.br/DocReader/154083_02/36553; acesso em: 06/12/2018.
88 Jornal do Brasil, Suplemento do Livro, Rio de Janeiro, 19/10/1968, p. 11. Disponível em https://memoria.bn.br/DocReader/030015_08/123571; acesso em: 06/12/2018.
89 Lincoln Secco, A Batalha dos Livros, op. cit., p. 134.
90 Sandra Reimão, op. cit.. O conjunto do trabalho de Sandra Reimão nos dá um panorama de outras pesquisas que se aprofundaram nas listas de livros apreendidos e censurados durante a Ditadura Militar.
91 Números extraídos de Laurence Hallewell, op. cit., p. 751.
92 Além do ineditismo em língua portuguesa, a edição da Civilização Brasileira parece ter sido um marco no continente latino-americano. A primeira edição completa de O Capital (03 volumes) na América Latina será publicada no México pela Fondo de Cultura Economica, em 1946, tradução de Wenceslao Roces. Em 1956, a editora do Partido Comunista Argentino, Cartago SRL, decide fazer a primeira edição argentina, também dos três volumes, com base na edição mexicana. Somente na década de 1970, soube-se que a tradução de Roces fora realizada do russo e não do alemão, sendo assim, é no final desta década que aparecem as primeiras traduções do original alemão em língua espanhola com uma edição em Barcelona e outra no México. Sobre o tema ver Horácio Tarcus, op. cit. p. 54-60.
93 Karl Marx, O Capital. Crítica da economia política, Coordenação e revisão: Paul Singer, Tradução: Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo, Abril Cultural, 1983; Karl Marx O Capital. Crítica da economia política, São Paulo, Boitempo, 2011. Tradução de Rubens Enderle.