Felipe Castilho de Lacerda, A propósito de Marisa Midori Deaecto y Jean-Yves Mollier (Dir.), Edição e Revolução. Leituras comunistas no Brasil e na França
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Palabras clave

Comunismo en Brasil
Historia del libro y la edición

Resumen

A propósito de Marisa Midori Deaecto y Jean-Yves Mollier (Dir.), Edição e Revolução. Leituras comunistas no Brasil e na França, Belo Horizonte, Cotia, Ateliê Editorial, Editora da UFMG, 2013, 351 pp.

É sobre as relações entre os comunistas e suas edições que trata Edição e Revolução. Leituras comunistas no Brasil e na França. O livro, de organização de Marisa Midori Deaecto e Jean-Yves Mollier, foi coeditado pela Ateliê Editorial de São Paulo e a Editora da UFMG, de Minas Gerais. Afora a excelente introdução intitulada “A Batalha do Livro”, da organizadora Marisa Midori, o livro se divide em três seções, sendo a primeira a que reúne os artigos relacionados ao Brasil e a terceira aqueles que tratam da França.

Entre elas, como segunda seção do livro, há interessante exposição impressa intitulada “A arte do livro comunista. Uma breve e imodesta exposição” que nos apresenta as capas de diversas publicações comunistas —entre brochuras, livros e revistas— do Brasil e da França, dos anos de 1920 aos de 1960. Há três seleções temáticas: várias edições do Manifesto Comunista; periódicos comunistas, brasileiros e franceses; e, por fim, a coleção Cadernos do Povo Brasileiro.

Iniciando a primeira parte do livro, temos o artigo de Lincoln Secco, intitulado “Leituras Comunistas no Brasil (1919-1943)”. O artigo apresenta a leitura nos seus mais diversos aspectos e como ela, lentamente, adentra a vida operária comunista no Brasil. Os primeiros autores comunistas —como Lenin e Bukharin— circularam inicialmente na imprensa operária, já antes do surgimento do Partido Comunista do Brasil (PCB). A primeira década de existência do partido é ainda de rarefação editorial. No entanto, notando-se o tamanho do partido —273 membros, em 1924; 700, em 1928—, percebe-se o notável esforço de publicação de impressos. Entre livros, opúsculos, jornais, revistas e folhetos, o partido publicou 242.013 impressos, apenas entre 1922 e 1925.

Os primeiros livros com os quais os comunistas brasileiros puderam travar contato eram importados. Isso porque do artigo em revista para a brochura há um passo importante, que exige recursos e tradutores. Os primeiros livros circularam em espanhol. Os tradutores foram os próprios membros da direção do partido: Astrojildo Pereira, Octávio Brandão, Antonio Bernardo Canellas. Brandão elaborou ainda os primeiros cursos de formação política para os operários. A leitura era feita usualmente em voz alta, para que aqueles que não soubessem ler pudessem acompanhar os demais, lembrando que cerca de 70% da população na década de 1920 não sabia ler nem escrever.

A tarefa de divulgação do ideal comunista por meio de publicações teve alcance limitado por um fator característico dos primeiros anos do PCB: a ausência de uma editora que publicasse a linha do partido. A situação muda de figura significativamente na passagem para a década de 1930. Surgem editoras alinhadas ao partido, como a Marenglen (Marx-Engels-Lenin), a Lux e a Selma (Stalin-Engels-Lenin-Marx). Além, é claro, da Gráfico-Editora Unitas Ltda., que se alinhava à Oposição de Esquerda. As publicações têm grande crescimento nessa década, demonstrado pelo gráfico à página 63. A tendência de crescimento no número de publicações será freada pela intensa perseguição que se seguiu ao Levante Comunista de 1935. O partido então se desarticula e só conseguirá se reorganizar na década de 1940. É só então que surgirão as grandes editoras do partido, sobretudo a Editorial Vitória — tema do artigo de Flamarion Maués—, suprindo aquela deficiência inicial.

Passa-se da visão de conjunto de Secco para o estudo mais delimitado de Dainis Karepovs, “A Gráfico-Editora Unitas e seu Projeto Editorial de Difusão do Marxismo no Brasil dos Anos 1930”. Em meio às editoras surgidas no início da década de 1930, fato que possui relação com as mudanças que se sucederam à Revolução de 30, a Unitas teve destacado papel de divulgação da literatura marxista. A marca fundamental da editora será a publicação de Trotsky no Brasil. Mas certamente não se limitou a isso.

Assim como suas congêneres no momento — Alba, Calvino Filho, Cultura Brasileira— a Unitas tinha catálogo mais amplo do que a publicação de livros de esquerda, com o objetivo de promover a sustentação econômica da casa editora. As obras de esquerda apareciam em coleções intituladas “Sociologia”, “Economia”, “Política” e “Filosofia”. Além disso, havia a coleção de caráter mais militante, a “Aurora” e outra voltada para a divulgação da pedagogia marxista, a “Biblioteca Contemporânea de Educação”. De especial importância é o fato de ter a Unitas editado pela primeira vez no Brasil algumas das obras básicas do pensamento marxista para a formação política do militante. Textos de Plekhanov, Engels e também duas edições do Manifesto Comunista saíram pela editora. Cumpre lembrar, portanto, como frisa Karepovs, que mais que “trotskista”, a Unitas foi uma editora marxista.

A segunda metade da década de 1930 foi momento de intenso refluxo de todo o movimento operário em função da aberta perseguição perpetrada pelos órgãos repressivos do Estado após a tentativa revolucionária comunista em 1935. Apenas na década de 1940 é que o Partido Comunista vai se reorganizar. É nesse período que finalmente se estrutura aquilo que faltava ao PCB para que pudesse divulgar mais adequadamente suas ideias, as editoras do partido. A mais importante foi a Editorial Vitória. O terceiro capítulo do livro, “A Editorial Vitória e a Divulgação das Ideias Comunistas no Brasil (1944-1964)” de Flamarion Maués estuda esta casa editorial.

O período entre ditaduras que vai de 1945 a 1964 é de intenso desenvolvimento da divulgação ideológica comunista. Com atuação legal no breve período de 1945 a 1947 e clandestina, mas ainda possível, até 1964, o PCB consegue exercer atividade editorial única durante toda sua existência. Muitos intelectuais e artistas se ligam à linha nacional-popular proposta pelo Partido Comunista já em fins da década de 1950 e início de 1960. Antes da repressão brutal que abaterá todas as forças progressistas durante mais de vinte anos, houve ainda tempo para um empreendimento editorial de grande importância: os Cadernos do Povo Brasileiro, tema do artigo de Angélica Lovatto “Um Projeto de Revolução Brasileira no Pré-1964: os Cadernos do Povo Brasileiro”.

Assim, da década de 1920 à de 1960, percebe-se a evolução e os obstáculos para a edição comunista no Brasil. Durante essas quatro décadas e meia, buscou-se traduzir, publicar e distribuir, no intuito primordial da ideologia comunista de divulgar o ideário da revolução proletária. Por todo esse período, em meio às dificuldades de publicar, os leitores foram obrigados a importar livros para ter acesso a gama maior de literatura proletária. Os comunistas brasileiros leram principalmente em espanhol e francês. Como já havia anotado Edgard Carone, a França foi o principal centro difusor de literatura marxista para o mundo latino. É sobre ele que trata a terceira seção de Edição e Revolução.

A seção dedicada à relação dos comunistas do hexágono com a edição é aberta pelo organizador Jean-Yves Mollier. Em sua característica escrita, plena de erudição, desenrolando-se em longos parágrafos, o capítulo “Grandes Momentos do Livro Político na França” apresenta visão panorâmica de cerca de dois séculos de produção de impressos de caráter político, iniciando “como muitas vezes no caso francês, […] com a erupção da política no cenário nacional em julho de 1789” (p. 249). O livro político acompanhará as explosões revolucionárias do século XIX francês e sofrerá nos períodos de refluxo reacionário.

Logo após a Primeira Guerra Mundial, com o surgimento do Partido Comunista Francês, suas editoras ilustrarão as oportunidades oferecidas pelos comunistas ao livro político, resumidas em duas palavras inventadas pela III Internacional: agitação e propaganda, ou “agitprop”. Em relação aos seus antecessores socialistas, a política para as edições será completamente revista, surgindo empresas para substituir as editoras “burguesas”, às quais, até então, os dirigentes confiavam seus escritos. Com a entrada do PCF nesse subcampo editorial, assiste-se a verdadeira mutação do livro político. Além do PC francês, editores de extrema-esquerda aproveitam também a calmaria da Frente Popular (1936-1937) para publicar muitos clássicos.

Durante a Segunda Guerra Mundial, as forças da Resistência valeram-se da escrita para combater o invasor e o governo de Vichy que o apoiava. Intensificaram-se os escritos políticos e as Éditions de Minuit se destacaram. Saindo da guerra, a França exaurida ainda nutria gosto pela leitura e os estoques das editoras e livrarias haviam se esgotado. Na década de 1950, o PCF lançava suas “batalhas do livro”. As Éditions Sociales, os Éditeurs Français Réunis, depois o Cercle d’Art e La Farandole ocupariam terreno, formando rede de livrarias única no mundo não comunista, juntando-se logo ao Centre de Diffusion des Livres et de La Presse (CDLP), estrutura de distribuição anterior à guerra.

Na década de 1960, outros editores decidiram ocupar o terreno do livro político, como as Éditions du Seuil. Havia ainda com extrema importância as Éditions de Minuit e o editor François Maspero. Na década de 1980, a situação mudou de figura e Mollier demonstra o declínio de algumas editoras e a continuidade da publicação por outras. A Queda do Muro de Berlim e a débâcle da União Soviética são marcos importantes para a publicação do livro político na França, o que certamente não significa o seu fim.

Fazendo novamente o movimento de passagem de um artigo sintético e panorâmico para análises delimitadas, os dois seguintes capítulos de Edição e Revolução, “O Livro na Política: As Editoras do Partido Comunista Francês (1920-1958)” de Marie-Cécile Bouju e “As Livrarias do Partido Comunista Francês (1944-2000)” de Julien Hage, buscam demarcar a evolução das editoras do PCF e o papel das livrarias ligadas aos comunistas ao longo do século XX.

Com o texto de Serge Wolikow, “História do Livro e da Edição no Mundo Comunista Europeu”, finaliza-se com a proposta de periodização da história do livro e da edição no mundo comunista europeu no “breve século XX”. O primeiro período seria o da “proximidade do horizonte revolucionário”, da revolução soviética em formação e do projeto revolucionário mundial, entre 1917 e 1929; o segundo, o da stalinização nacional e mundial do comunismo, de 1930 a 1955; o terceiro, o tempo das crises e das reformas abortadas, de 1956 a 1989.

Wolikow associa a história do livro e da edição no mundo comunista diretamente a seu projeto de poder. Ao menos no início, a política editorial do Komintern é tributária de herança secular, inscrita na tradição das Luzes: associa o saber com a tradição do movimento operário. Assim, prolonga o legado do movimento operário e socialista. No entanto, há novidade essencial colocada pelo comunismo como forma partidária organizada a partir de 1917: há uma associação entre o livro e uma concepção de combate político que coloca em seu centro a ação organizada do partido e seus militantes. Daí em diante, o livro é diretamente ligado à ação do Partido Comunista. Disso decorre o controle político sobre a produção editorial e a importância da edição para a ação política.

Organizado de maneira muito elaborada e consciente por dois grandes estudiosos da história dos livros, Marisa Midori Deaecto e Jean-Yves Mollier, os diferentes capítulos se complementam e contam uma história bem estruturada das edições comunistas no Brasil e na França ao longo do século XX. É certo que outras histórias podem ser narradas, inclusive sob a influência que este livro deve exercer sobre futuros pesquisadores do comunismo e das esquerdas. Quanto à proposta comparativa do livro, percebe-se, pelos capítulos que abordam a seção brasileira, que não se trata de mera comparação paralela, havendo íntima relação entre a formação da literatura comunista brasileira e o mercado editorial francês.

Os textos nos sugerem algumas observações. Interessa notar os marcos cronológicos que circunscrevem os dois conjuntos de artigos. Os quatro estudos brasileiros se delimitam ao período de 1919 a 1964. Trata-se basicamente do período em que começam a surgir os primeiros grupos influenciados pelas notícias da Revolução Russa dentro do movimento operário, dando origem finalmente ao PCB, até 1964, quando se dá o golpe de Estado que destrói toda a atividade legal ou semilegal dos comunistas até então. Se os marcos não se estendem para antes disso é porque, diferentemente do Partido Comunista Francês, que herdou estrutura editorial surgida anteriormente, o PCB não teve um grande Partido Socialista do qual herdar tradição e estrutura editorial. Os comunistas brasileiros surgiram das fileiras anarquistas e anarcossindicalistas que, sob forte repressão, especialmente no período das grandes greves de 1917 a 1919, não possuíam eles mesmos mais do que alguns jornais, ligados ou não a sindicatos.

Por outro lado, a história editorial comunista sofre o golpe tremendo da repressão instaurada pelo regime de exceção iniciado em 1964. Como apontaram Flamarion Maués e Angélica Lovatto, a Editorial Vitória e os Cadernos do Povo Brasileiro deixaram de existir logo nos primeiros dias ditatoriais. Portanto, em termos de produção significativa, a história editorial comunista, como demonstram os textos apresentados em Edição e Revolução, se concentra entre 1922 e 1964, encerrando um ciclo de história.

Do lado francês, os textos têm como marco cronológico inicial a Revolução Francesa. O estabelecimento de tal marco nos remete à interpretação de Wolikow de que o projeto político comunista “[…] inscrito diretamente na tradição das Luzes, associa desde as origens o saber com a emancipação política e social, prolongando assim a tradição do movimento operário e socialista” (p. 313). É claro que tal interpretação deve ser relacionada ao projeto comunista mundial e não apenas ao francês. Além disso, tanto Mollier quanto Wolikow observam a originalidade que os comunistas do século XX associarão à prática editorial. Mas constitui matéria de interesse que todos os artigos franceses associem a história do livro comunista a um conceito mais geral de “Livro Político”. O marco cronológico final é o da queda do Muro de Berlim e do fim da União Soviética, o que constitui o golpe final em um movimento editorial que já vinha declinando nos anos 1980.

O livro Edição e revolução. Leituras comunistas no Brasil e na França se constitui em fonte de extrema importância para os estudos da história editorial de esquerda, brasileira e francesa. Não apenas as exposições e análises, mas ainda a documentação apresentada pelos pesquisadores deve estimular o crescimento, no Brasil, do campo do qual o historiador Edgard Carone foi o pioneiro.

Urge lembrar que em todos os estudos acerca das relações entre o comunismo e o livro político —recordando ainda que os estudiosos do livro são quase sempre bibliófilos apaixonados— surja sempre no fundo, às vezes conscientemente, às vezes sem mostrar sua face, aquela pergunta impertinente e incômoda: “os livros fazem revoluções? ”. A partir dos excelentes textos de Edição e Revolução podemos tentar uma saída alternativa afirmando: se os livros fazem ou não revoluções não se sabe, mas eles estiveram presentes em todas as revoluções do siècle des communismes.

Felipe Castilho de Lacerda
(Programa de História Econômica/USP)

 

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